A pipa perdida

Publicado no jornal Diário Popular - edição de 2 e 3 de outubro de 2021 (pág. 06) - Pelotas/RS

Pipa ou pandorga? O nome do brinquedo nunca foi uma questão para a menina, que esperava por dias ventosos para brincar de olhar para um céu colorido por sua própria borboleta de quatro tons. A depender das viravoltas no ar, ora despontavam o azul e o verde; ora apareciam o laranja e o vermelho do papel de seda preso por linhas e varetas de bambu.

Nem todo dia era propício a soltar pipa. A condição ideal do clima incluía vento suficiente para seu voo e a adequada direção das correntes de ar, que não levariam a pipa para o lado da fiação elétrica. Era essencial também a paciência do pai da menina - ela desejava ver o brinquedo alcançar as alturas nos primeiros minutos!

Certa tarde de primavera, o vento levou a pipa da mão de seu pai. Escapou com a corda rompida a brincadeira de criança; flutuou a ideia de que voar podia ser uma tarefa segura. A suspeita era de que ela não tivesse voado até muito longe; deveria estar caída no pátio de alguma das casas da quadra ao lado. Será que os vizinhos a devolveriam?

Medo parecido sentia ao brincar de bola com as amigas na casa da vó e com os colegas na escola. “Não joga a bola muito alto!”, ordenava. O vizinho da vó tinha netos também pequenos, que certamente pegariam a bola para eles, se ela caísse em seu território. Na escola, os moradores do casarão do outro lado daquele muro baixo jamais haviam devolvido uma bola sequer. Eles deviam ser avós malvados de pobres criancinhas órfãs impedidas até mesmo de ir ao colégio - pequenos prisioneiros, que eventualmente teriam novas bolas para brincar. Assim a imaginação infantil da menina fantasiara... 

Falo da menina como se, em parte, não fosse mais ela... Como se já não estivesse aqui a guria que esperava por dias ensolarados de primavera para ver seu sonho colorido alçar voo.

Na minha lembrança, tínhamos desistido muito fácil de procurar a pipa - impressão errada, segundo meu pai: batemos na porta de algumas casas. E era impensável que ela tivesse escolhido cair justo num telhado, tornando impossível para mim alcançá-la. Se não fosse encontrada, seria a segunda a ter esse destino e, depois daquilo, não haveria mais pipas. Foi o que aconteceu. O trauma prevalecera, assim como depois da morte do nosso passarinho - mais nenhum outro voltaria a cantar pelas manhãs.

Desistir da brincadeira após a segunda pipa perdida pode não ter sido tão melancólico quanto parece hoje, afinal, criança troca de brincadeira tal qual adulto muda de série na televisão. Porém, quando se trata de um sonho daqueles desejados há muito tempo, não parece uma boa estratégia abandoná-lo por nos ter escapado uma ou duas vezes. Sem extremos: buscá-lo, sim, mas sem apelar à positividade tóxica. Nada de frases motivacionais clichês por um tempo, do tipo “não desista nunca”. 

Depois de uma, duas, dez perdas ou decepções, vivenciemos o momento como ele é. Reerguer-se e lançar-se a voo novamente pede um tempo de pés no chão, de desenredar os nós, remendar as linhas, de colorir e enfeitar o papel.

Por: Daniela Agendes

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