Distrações e tropeços

▪︎ Publicado no jornal Diário Popular - edição de 30 e 31 de outubro de 2021 (pág. 06) - Pelotas/RS ▪︎

Sempre que tropeço na rua, olho primeiro para o chão e depois para os lados - tem alguém rindo da estabanada? No chão, talvez eu consiga identificar o que me fez cair. Uma calçada destruída pelo tempo. Um buraco. Uma raiz de árvore que extravasou e rachou o concreto. Algum chinelo perdido (já reparou como às vezes aparece um pé solto no meio da rua? Nunca é o par...). Eu brinco, mas um tombo ocasionado por uma calçada malconservada pode até acabar em ação judicial!

Foi pura distração. Para onde eu estava olhando quando tropecei? Poderia estar distraída por uma criança ali na praça, pedindo algodão-doce para a mãe (a menina tem pena do vendedor, um senhor que já não consegue mais apitar, com a mesma intensidade, o chamariz da clientela). A música do apito é sempre a mesma, seja quem for o vendedor. Ela gosta de escutar o som açucarado de infância. E ela quer provar um pedaço de sonho cor-de-rosa (ou azul, para variar). 


Foi a menina insegura, lá no outro lado, olhando com muita atenção para a esquerda e depois para a direita antes de atravessar a rua, o motivo de eu ter me distraído? A mesma garota que, anos depois, olharia para trás frequentemente para se certificar de que ninguém a seguia e se sentiria aliviada por só ver mulheres naquele quarteirão.

Às vezes, tropeço por levar um susto. Pode ser porque vi um carro desviar bruscamente para evitar pechar numa moto que irregularmente o ultrapassava pela direita, enquanto o carro já dava sinal de que dobraria para o mesmo lado. Dentro do automóvel, vejo uma motorista de reações rápidas e eficazes - embora ofegante pelo quase acidente.

Meu sobressalto poderia ter sido pelo foguete lançado no comício (ou seria um "showmício"?) que acontece ali no Largo do Mercado. À esquerda do palco, tem uma guria de braço esticado com uma bandeira, esperando que seu balançar traga quatro anos de realizações. 

Foguetes anunciam mais uma partida do Xavante. Não importa quantos jogos tenha havido, não é raro tomar um susto quando os estouros começam... 

Quanta coisa pode acontecer enquanto a gente está “distraidamente” caminhando pela vida, tentando desviar dos percalços nos utilizando de visão panorâmica - inveja dos cavalos, que a têm muito melhor do que nós. 

E quantos contratempos podem acontecer enquanto você está preocupada em lidar com os reflexos de uma pandemia, que mudou completamente sua vida, em tantas esferas. Seu filho (ou você mesma) pode ter desenvolvido transtornos de ansiedade. A relação com seu companheiro desandou, e ele pode estar cogitando (ou mesmo já ter começado) a lhe trair. Sua prima está com fadiga constante, o que pode indicar “Covid longa”. Desde esse tipo de coisa (e me desculpem pelo ar dramático), até dificuldades mais corriqueiras, como: a caixa da gordura da pia precisa de limpeza. Faltou papel higiênico em casa. A prateleira dos livros empenou. 

Como diz o escritor pelotense Marcelo Nascente, em seu recém-lançado livro de poesias “Bula” -: “nunca pedi que não tivesse pedras nem barro / só que nunca faltasse o chão”. Aí está a vida para ser “tropeçada”, e “a gente segue tentando porque, ao contrário do resto / sabemos que o começo nunca envelhece”.

Mas é claro que estou falando de obstáculos contornáveis pelo nosso próprio esforço, e não daqueles causados por uma crise econômica e social da magnitude que estamos (vi)vendo, já prevista desde quando este governo assumiu, e potencializada pela pandemia. Para o desemprego, para os preços absurdos do gás de cozinha e da gasolina e para a fome, não há distração.

Por: Daniela Agendes

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Imagens: https://unsplash.com/

Comentários

  1. Muito bem gostei muito, de onde sai tanta criatividade pra escrever textos q fazem refletir.

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