A vibração do silêncio

Publicado no jornal Diário Popular - edição de 05 de agosto de 2021 (pág. 06) - Pelotas/RS

Desde que o isolamento social se instalou, os sons da vida urbana mudaram de frequência e intensidade. A frenética inquietude das ruas deu lugar a certos silêncios, antes improváveis. São silêncios de ausências: dos shows a céu aberto, das torcidas nos estádios, dos ensaios de escolas de samba, dos ritos religiosos, o que acostumou os ouvidos a uma rotina diferente, um pouco menos barulhenta.


Manchete da semana passada dizia: “Governo do RS quer começar a liberar grandes eventos”. Já nesta semana, o governador esclareceu que o retorno não será tão imediato quanto parecia após o anúncio do Gabinete de Crise, mas sim que terão início as discussões sobre como se dará a volta do público aos eventos.


O público quebrará o silêncio ao trazer com ele a vibração do som das multidões, ou pelo menos a lembrança e a promessa dela, visto que o limite de pessoas deverá ser inicialmente reduzido. E assim o será com razão, pois a falta de vacinas mantém Pelotas com menos de 30% de vacinados com segunda dose, distante dos 70% necessários para o controle da pandemia.

É verdade que a retomada da vida trará o propagar de sons que já fazem falta. Entretanto, nunca houve silêncio pleno; nem mesmo no começo do inverno de 2020, quando o temor pela contaminação pelo novo coronavírus era imenso e os índices de isolamento social conseguiam atingir entre 40 e 50% em Pelotas, principalmente durante as medidas de restrição mais rígidas.

O barulho das motos rasgava a mudez da rua recentemente asfaltada; um barulho que nunca cessou e que garantia a entrega de todo tipo de produto, comida, lanche a quem podia permanecer em casa. Um ruído de quem sempre tem pressa e a deixa evidente pela buzina a cada esquina desta rua preferencial. Teme que o outro não veja o “PARE” escondido atrás da árvore e avance. O sinal de alerta que acusa a infração: não obedecerá à placa de velocidade máxima de 40km/h. Atrasos são injustificáveis nesse ganha-pão.

Talvez nem reduza o suficiente para se certificar de que nenhum ciclista ou pedestre desatento esteja atravessando. A buzina, a cada esquina, grita: “Tenho pressa, estou voando, e não reclame, pois avisei você, que pode parar e contemplar esta praça que eu já nem percebo, nem enxergo mais, porque já cheguei em outra esquina”. Mais uma buzina...


Quem sabe em breve o canto das torcidas voltará a dar o aviso: tem jogo de futebol! Nem preciso ligar o rádio. A cada gol, ecoará a reação de inflamada alegria, ou de decepcionado lamento. “Bem cuidado aí, padrinho!” - da janela, sei quando a partida terminou.

Logo as madrugadas voltarão a ficar acordadas por gente da noite, voltando de festas, baladas e bares. Logo ouvirei o burburinho de crianças e jovens na saída da escola. A sirene a cada troca de período indica o vaivém incansável das professoras pelas salas.

“Dois patinhos na lagoa!”. Talvez até o bingo volte a acontecer. “Idade de Cristo!” - nem essa deu sorte, ninguém completou a cartela ainda. Nesta manhã, o jogo está longo... Qual será o prêmio? E onde acontece esse bingo? Se prestar atenção à direção do vento, ele dirá de onde os números vêm, em alguns finais de semana, me acordar mais cedo do que gostaria.

O som que definitivamente não quero mais escutar pela janela é o do abre e fecha do contêiner do lixo. Gente à procura de material reciclável para garantir um tostão, gente em busca de comida. Passavam fome, no final de 2020, 19 milhões de brasileiros, segundo pesquisa da Rede Penssan.

O ruído do ronco do estômago implora a saciedade do silêncio. 

Por: Daniela Agendes


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