A vibração do silêncio
Publicado no jornal Diário Popular - edição de 05 de agosto de 2021 (pág. 06) - Pelotas/RS
Desde que o isolamento social se instalou, os sons da vida urbana mudaram de frequência e intensidade. A frenética inquietude das ruas deu lugar a certos silêncios, antes improváveis. São silêncios de ausências: dos shows a céu aberto, das torcidas nos estádios, dos ensaios de escolas de samba, dos ritos religiosos, o que acostumou os ouvidos a uma rotina diferente, um pouco menos barulhenta.
Manchete da
semana passada dizia: “Governo do RS quer começar a liberar grandes eventos”. Já
nesta semana, o governador esclareceu que o retorno não será tão imediato
quanto parecia após o anúncio do Gabinete de Crise, mas sim que terão início as
discussões sobre como se dará a volta do público aos eventos.
É verdade
que a retomada da vida trará o propagar de sons que já fazem falta. Entretanto,
nunca houve silêncio pleno; nem mesmo no começo do inverno de 2020, quando o
temor pela contaminação pelo novo coronavírus era imenso e os índices de
isolamento social conseguiam atingir entre 40 e 50% em Pelotas, principalmente
durante as medidas de restrição mais rígidas.
O barulho
das motos rasgava a mudez da rua recentemente asfaltada; um barulho que nunca
cessou e que garantia a entrega de todo tipo de produto, comida, lanche a quem
podia permanecer em casa. Um ruído de quem sempre tem pressa e a deixa evidente
pela buzina a cada esquina desta rua preferencial. Teme que o outro não veja o
“PARE” escondido atrás da árvore e avance. O sinal de alerta que acusa a
infração: não obedecerá à placa de velocidade máxima de 40km/h. Atrasos são injustificáveis
nesse ganha-pão.
Talvez nem
reduza o suficiente para se certificar de que nenhum ciclista ou pedestre desatento
esteja atravessando. A buzina, a cada esquina, grita: “Tenho pressa, estou
voando, e não reclame, pois avisei você, que pode parar e contemplar esta praça
que eu já nem percebo, nem enxergo mais, porque já cheguei em outra esquina”.
Mais uma buzina...
Logo as madrugadas voltarão a ficar acordadas por gente da noite, voltando de festas, baladas e bares. Logo ouvirei o burburinho de crianças e jovens na saída da escola. A sirene a cada troca de período indica o vaivém incansável das professoras pelas salas.
“Dois
patinhos na lagoa!”. Talvez até o bingo volte a acontecer. “Idade de Cristo!” -
nem essa deu sorte, ninguém completou a cartela ainda. Nesta manhã, o jogo está
longo... Qual será o prêmio? E onde acontece esse bingo? Se prestar atenção à
direção do vento, ele dirá de onde os números vêm, em alguns finais de semana,
me acordar mais cedo do que gostaria.
O som que definitivamente
não quero mais escutar pela janela é o do abre e fecha do contêiner do lixo.
Gente à procura de material reciclável para garantir um tostão, gente em busca de
comida. Passavam fome, no final de 2020, 19 milhões de brasileiros, segundo pesquisa
da Rede Penssan.
O ruído do
ronco do estômago implora a saciedade do silêncio.
Por: Daniela Agendes
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