Faz aí umas escolhas por nós, Netflix

Publicado no jornal Diário Popular de 14/05/2021 (pág. 04) - Pelotas/RS

A Netflix lançou recentemente a funcionalidade de reproduzir séries e filmes aleatórios, para aquelas horas de indecisão em que passaríamos um tempão na tela de início, pulando de título em título. Quando a gente vê, já se passou meia hora, e nada de escolher o que assistir. Passar o tempo só olhando o catálogo de filmes parece até uma versão atual, e bastante nostálgica, daquela visita à locadora, quando passear de corredor em corredor era parcela significativa do prazer de alugar uma fita VHS ou um DVD.


A ferramenta “Títulos Aleatórios” da Netflix toma decisões conforme nossos gostos, para sugerir algo novo, baseada no que já vimos. Ela também dá o play em algo da “minha lista”, em séries a que já estamos assistindo ou em produções que ainda não terminamos de ver.

E se a vida tivesse um recurso desses? Um botão que, acionado, tomaria a decisão com base num banco de dados de preferências do próprio indivíduo. Faz aí umas escolhas por nós, Netflix, mas desta vez, num aplicativo mental. Algumas delas poderiam ser surpreendentes, para que não ficássemos muito entediados. No café, decida entre pão com manteiga ou torrada. No final de semana, o que dá menos preguiça, um passeio na praia ou no shopping? Para a janta, devo pedir pizza ou baurú? Em qual curso tenho chances maiores de me inscrever e ter ânimo de ir até o final?

A versão “pro” da funcionalidade teria acesso a assuntos mais sérios. Ajudaria a definir qual curso fazer na faculdade; em qual trabalho teremos mais sucesso e realização pessoal; em que amigos podemos confiar e quais devemos avaliar com um “joinha invertido”.

Em todo ano de eleição, o aplicativo puxaria na memória os políticos em que o cidadão votou no pleito anterior. Com essa tarefa completada, ele embaralha todos os candidatos disponíveis no momento, e surgem aqueles mais propensos a cumprirem pelo menos algumas das promessas.

Pularíamos pra qual versão de nós mesmos, se pudéssemos? A quais momentos certamente pararíamos pra assistir? Só aos melhores e especiais, ou também àqueles que foram duros, mas nos fizeram aprender um montão de coisas e a seguir adiante? Ok, tudo bem, de alguns lances, não precisaríamos nem terminar de ver o primeiro minuto, pode passar logo pro próximo.

Gosto ainda do recurso de prévia de uma cena, disponível apenas em alguns títulos da Netflix. Diferente do trailer, que resume a história toda, ela mostra só um trecho do filme e já dá o tom se iremos querer vê-lo, ou não. Com essa função na vida, seria possível prever no que daria aquele projeto que estamos em dúvida se participamos. Ou, se vamos mesmo àquela viagem que nos reservaria a surpresa de 10km de estrada de chão até chegar ao destino - com o GPS offline!

É claro que em muitas vezes é difícil tomar decisões, e não está errado se preocupar, porque a vida exige muitas delas, de maior ou menor importância e com graus diversos de consequências. Mas é certo que, para o caso de achar que poderíamos ter feito melhor, de arrependimento, ou mesmo de derrota, a vida dá chances de fazer tudo de novo, de voltar atrás e tentar do mesmo jeito ou de modo diferente. Afinal, até a função “títulos aleatórios” da Netflix tem a alternativa de pular para o próximo filme e a opção de sair dali e escolher o que queremos, por conta própria.

Por: Daniela Agendes
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Imagem: netflix.com

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